Julgram x Bazz-B — Uma visão mais realista sobre amizade
Como Bleach quebra o clichê da amizade dos shounens e mostra as consequências de uma relação quebrada
Sem dúvidas, o maior clichê dos mangás shounen é a forma de como tratam amizades. O protagonista começa a história solitário (ou quase) e ao longo de sua trajetória faz muitos amigos, rivais que se tornam amigos, resgate de amigo, heróis usando o famoso “poder da amizade” para derrotar vilão, personagem fazendo discurso sobre amizade e por aí vai.
A editora Shounen Jump, responsável pelos principais mangás de sucesso, possui como lema “amizade, esforço e vitória”, sendo estes temas presentes em obras como Dragon Ball, Naruto, One Piece, Fairy Tail, My Hero Academia, Shokugeki no Souma etc.
Nesse sentido, Bleach não é nada diferente, visto que ao longo de sua história utiliza quase todos aqueles clichês disponíveis. Todavia, Tite Kubo resolveu fazer algo diferente no último arco, qual seja, inserir dois vilões os quais eram grandes amigos na infância, porém devido a decisões que ambos tomaram, acabaram se afastando um do outro e, embora futuramente se reencontrem e façam parte do mesmo grupo, a amizade dos dois nunca retornou.
Anteriormente, o mangá já havia abordado a história de Kaname e Sanji, dois amigos que se tornaram rivais e em razão de um mesmo sentimento, compartilharam o mesmo destino. Acontece que, antes de Kaname Tousen morrer, de alguma forma ele faz as “pazes” com Sanji Komamura e consegue se despedir, porém a análise de hoje tem um destino mais trágico.
Breve contexto histórico.
Yhwach, grande vilão da história, consegue invadir o Palácio das Almas, assassinar o Rei das Almas (o deus do universo de Bleach) e consumir seu poder, tornando-se o novo ser supremo.
Agora onipotente, Yhwach começa seu processo de criação de um novo mundo e enquanto “descansa”, os quincies que sobreviveram ao Auswählen (uma espécie de “apanhamento”) invadem o castelo em busca de vingança, dentre eles Bazzard Black (Bazz-B), o qual durante o caminho encontra Jugram Haschwalth, braço direito de Yhwach e antigo de Bazz-B, porém desta vez ambos estão em lados opostos, não restando outra alternativa senão se enfrentarem pela última vez.
Durante o confronto serão apresentados flashbacks, principalmente na perspectiva de Jugram, sob a infância que passou com Bazz-B e de como os dois se separaram e seguiram caminhos diferentes.
Após esta luta, um outro ator importante aparece, Uryuu Ishida, que se encontra em uma posição similar ao de Jugram, mas toma decisões diferentes e que, indiretamente, culmina na derrota do grande vilão.
Sobre os personagens.
Jugram Haschwalth é o conselheiro do imperador dos quincies Yhwach, é também seu substituto quando o líder dorme e o segundo em comando dos Wandenreich. É calmo, inteligente, racional e extremamente leal ao seu chefe.
Se o quincy Lille Barro é inspirado no Arcanjo Gabriel, Jugram é inspirado no Arcanjo Miguel. Em hebraico, o nome “Miguel” significa “aquele que é similar a Deus” (essa seria a tradução mais aceita, porém ainda há controvérsias), bem como no judaísmo Miguel é considerado o líder dos anjos e arcanjos e no cristianismo lidera o exército de Deus contra as forças de Satã (Apocalipse 12: 7–9).
Todavia, apesar de tamanha imponência, Haschwalth é introvertido e não é de se impor, pelo contrário, sempre abaixou a cabeça e seguiu as ordens de quem era mais forte que ele na situação, seja seu tio, Bazz-B ou Yhwach.
Por outro lado, Bazzard Black é o oposto de Jugram. Extrovertido, cheio de si (sendo soberbo na maior parte do tempo) e bastante temperamental. À primeira vista, Bazz-B aparenta ser um “Grimmjow 2.0”, porém são reveladas mais facetas da sua personalidade à medida que a história se desenrola. Sim, ambos são impulsivos e não têm receio de desobedecer seu superior, mas enquanto o arrancar age de forma mais animalesca e por instinto, o quincy apresenta ter um pouco mais de empatia com o próximo, desde que não interfira nos seus interesses.
Ademais, Bazzard não tem medo de dizer o que pensa, como quando mesmo explodindo de raiva, elogiou as sobrancelhas do Renji.
Note como a aparência e figurino de Jugram e Bazz-B evidencia a diferença de personalidade e posição militar de ambos. De um lado tem-se um homem alto, esbelto, de olhos claros e cabelo longo que chega a lembrar um cavaleiro branco (sua arma é uma espada medieval e um escudo), cujo figurino mais condecorado denuncia sua elegância e alta patente, do outro há um soldado de corte moicano e múltiplos piercings na orelha, além de usar luvas e braçadeiras. Seu visual é claramente inspirado no movimento punk dos anos 70, bem apropriado para um personagem que constantemente desobedece ao Rei Quincy e mais tarde se rebela contra ele.
Em Bleach, o poder de cada personagem é uma manifestação de sua personalidade, ideais ou conflitos internos e este dois quincies não fogem desta regra. A Schrift (letra) de Jugram é “B” (The Balance), cuja habilidade consiste na reversão de azar/infortúnio. Acontece que seu poder, a balança, é um reflexo de seu conflito interno entre sua amizade com Bazz-B e sua lealdade a Yhwach.
No caso de Bazzard, sua letra é o “H” (The Heat), que lhe permite controlar as chamas. A priori, sua habilidade se associa ao fato de Bazz ser bastante temperamental, mas durante sua luta contra Jugram, é revelado uma ligação visual de seu poder com o momento em que sua família é assassinada por Yhwach e sua casa é colocada em chamas. Logo, é possível também afirmar que os poderes de Bazzard estão ligados com o seu trauma.
Um detalhe interessante é que as Schrift de cada um é a inicial do sobrenome do outro. Esta foi uma dica do mangá dizer antecipadamente que os dois eram amigos de infância, outro momento foi no capítulo em que Yhwach anuncia Uryuu Ishida como seu sucessor, pois quando Bazz-B foi conversar com Jugram, ele o chama pelo apelido de “Jugo”.
Sobre a batalha em si.
Diferente das demais lutas analisadas, o embate entre os dois foi curto e até anticlimático, porque Jugram não teve dificuldade alguma de derrotar seu amigo, mas o que torna a batalha interessante ao ponto de escrever o presente texto são os flashbacks que ocorrem durante o confronto, adicionando profundidade aos personagens.
Quando criança, Jugram estava longe de ser o líder dos Sternritters como conhecido, ele era fraco, sem auto estima e claramente perturbado, visto que além de ser órfão, sofre abusos de seu tio, conforme se observa nos diversos machucados de seu corpo e do quão assustado ele fica quando seu tio o encontra.
Ao se conhecerem, Jugram tentava evitar interação, mas Bazzard forçou sua amizade com ele e lhe deu sua caça, o que fez os dois virarem amigos.
Meio ano depois, o vilarejo da família de Bazz foi incendiado por Yhwach e a floresta onde Haschwalth vivia também foi queimada no processo, matando o seu tio. Obviamente isso deixou Bazz-B devastado e jurou vingança contra o líder Quincy. Por outro lado, Jugram se sentiu indiferente perante a morte de seu abusado e não tinha o mesmo sentimento de ódio que seu amigo, mas passou cinco anos treinando na floresta com Bazz porque este era o desejo de Bazzard.
Contudo, apesar de bastante próximos, ambos não possuíam uma amizade saudável, porque Bazz sempre viu Jugo como alguém inferior e fraco, o qual estava atrasando ele de atingir seus objetivo, além de que Bazzard de certa forma foi egoísta ao impor seu desejo de vingança ao amigo e nunca ter se interessado para saber o que ele pensa.
Por seu turno, em razão de Jugram ser introvertido e ter autoestima baixa, ele não se abria de fato para seu amigo, não expressava seus desejos e opiniões. Veja como Jugram detesta o apelido “Jugo” porque era assim que seu tio lhe chamava, mas nunca contou isso para Bazzard, apenas disse que não gosta deste apelido na vez que se conheceram pela primeira vez e até a luta final entre os dois Bazz continuou chamando ele de Jugo.
Essa amizade tem sua reviravolta quando Yhwach chega a vila dos dois e recruta Jugram como seu braço direito, quando Bazzard Black presencia isto, ao invés de ficar feliz pela conquista de seu amigo e de terem dado mais um passo para atingirem o plano, fica visivelmente com raiva e inveja, o que deixa Haschwalth bem assustado.
Logo em seguida, Bazz tenta atacar Yhwach, mas o Líder Quincy é defendido por Jugram e este é o momento em que a amizade dos dois é quebrada. Sim, não há de se negar que Bazzard foi um mal amigo e reagiu de maneira inapropriada, mas foi a atitude de Haschwalth que destruiu a relação.
Lembre-se que Bazz perdeu sua família e Jugram era a pessoa mais próxima dele, passando mais de cinco anos juntos, então ver seu amigo defendendo o seu inimigo mortal foi uma traição.
Depois do episódio fatídico, levou-se três anos para que Bazzard se juntasse aos Sternritters e no começo ele tentou por várias vezes provocar e brigar com Jugram, mas nunca se engajou na luta. Analisando por agora, talvez esta seja a única forma de Bazz-B de conseguir atenção e interação com seu antigo amigo. Por sua vez, Haschwalth indiretamente protegia Bazz de retaliações por conta de sua atitude rebelde.
No entanto, durante a invasão quincy na Soul Society, Bazz agiu conforme um soldado e obedeceu às ordens de seu líder, aparentando ter esquecido seu objetivo de se vingar pela morte de sua família, mas foi após ter sofrido o Auswählen com os outros quincies que Bazzard “voltou” a si e a retornar com o seu antigo plano, até ser parado por Jugram, o qual sabia que Yhwach iria eliminar os demais quincies após consumir o Rei das Almas.
Obviamente, Bazzard não teve nenhuma chance e foi facilmente morto por seu antigo amigo, afinal, Haschwalth já havia feito a escolha há muito tempo atrás quando resolveu trair Bazz-B e ser leal a Yhwach. Em seus momentos finais, Bazz-B se sente até um pouco aliviado, porque ao invés de estar devastado por conta de ser assassinado pelo próprio amigo, percebe que era a primeira vez que os dois se conectaram depois de muito tempo.
Entra em cena Uryuu Ishida.
Ishida desempenha um papel importante no desenvolvimento de Haschwalth, pois Uryuu foi nomeado por Yhwach para ser seu sucessor e também está dividido entre escolher a lealdade ao Rei Quincy ou suas amizades no Mundo Humano. Talvez este seja o motivo de Jugram ter ficado indiferente, além de sua lealdade ao Yhwach, ao saber do anúncio de Ishida como próximo sucessor, diferente dos demais sternritters, os quais demonstraram desaprovação.
No entanto, ao longo do arco, Haschwalth sempre esteve atento e alerta com Uryuu, haja vista Ishida ter perdido sua mãe no Auswählen. Quando Yhwach descansa, Jugram recebe parcialmente seus poderes e assim consegue visualizar o futuro, tornando-se a máscara do imperador, sendo que neste momento sua desconfiança com relação ao Ishida se confirma ao descobrir que ele vai trair o líder.
Normalmente, Jugram é uma pessoa calma e serena, porém quando está com os poderes de Yhwach, torna-se alguém bem mais expressivo. É como se ele mostrasse um pouco mais de sua faceta quando está no poder e sabe que é a pessoa mais forte no momento.
Assim como The Balance é uma analogia ao conflito interno vivenciado por Jugram, pode-se entender que The Antithesis, poder de Jugram, tem uma relação maior do que o fato dele ser imune ao Auswählen. Como será visto em diante, Ishida é a antítese de Haschwalth.
Jugram se sente pessoalmente incomodado com Uryuu, pois não consegue compreender como alguém ao qual passa pela mesma situação que ele e ainda possui uma personalidade semelhante possa tomar uma decisão diferente dele. Haschwalth e Ishida sabem que Yhwach é o ser mais poderoso que existe e a probabilidade de derrotá-lo é praticamente nula, acontece que um deles tomou a decisão mais lógica enquanto o outro mais emocional.
Na verdade, a grande diferença entre os dois é que Jugram nunca teve uma relação saudável. Sim sua amizade com Bazz-B foi verdadeira, mas as suas experiências com seu tio, Bazzard e Yhwach lhe ensinaram que em uma relação, não existe igualdade e sim um dos lados será mais forte, terá mais poder e controle, de maneira que a pessoa mais fraca deve proporcionar ou oferecer algo a fim de não ser descartado.
Jugram quando criança caçou o coelho porque caso contrário não poderia retornar para casa ou se retornasse, iria apanhar. Ao treinar na floresta com Bazz-B, assumiu o objetivo deste de vingança para si pois não queria ser abandonado por seu amigo e, ao ser recrutado por Yhwach, tornou-se seu fiel escudeiro em razão de se sentiu rejeitado por Bazz-B quando este reagiu com inveja e ódio ao ver Haschwalth sendo escolhido pelo imperador.
Nesse pequeno diálogo do capítulo 680, percebe-se que para Haschwalth, só vale a pena formar um laço com alguém se você obter vantagem sobre.
Além disso, Jugram acredita que a vida é uma progressão de escalas (balanças) as quais o indivíduo decide o que por em cada escala. Tendo em vista que Haschwalth é um homem inteligente e racional, ele sempre escolheu seguir o lado/pessoa mais forte.
Contudo, Ishida revela que escolheu o “lado mais fraco da balança” simplesmente porque é onde estão seus amigos, sem intenção de extrair algo ou obter algum tipo de benefício. Na análise da luta entre Ichigo vs Ulquiorra, pontua-se que os laços e relações os quais se constroem com as pessoas formam o coração, dando sentido à vida. Quando Uryuu demonstra que em momento algum esteve do lado de Yhwach e sim de seus amigos, ele estava se referindo justamente a essa ideia proposta na luta entre o protagonista e o Espada, a qual Ishida estava presente inclusive.
Ocorre que Ishida já fez sua escolha bem antes, quando seu pai, Ryuuken, lhe ofereceu retornar seus poderes em troca de nunca mais se associar com shinigamis, Uryuu escolheu seguir Ichigo e Sado para resgatar Orihime no Hueco Mundo, ou quando escolheu partir com os seus amigos para Soul Society para salvar Rukia de uma execução.
Ao ser exposto da decisão e firmeza de Uryuu, Jugram sente uma enorme raiva e decide aplicar o golpe final no Ishida, até ser surpreendido pelo Auswählen de Yhwach, ficando incapacitado e na porta da morte. Haschwalth não se sente traído por isso, mas sim orgulho por ainda ter alguma utilidade ao seu mestre.
Contudo, seus pensamentos finais são diferentes de sua fala, pois Jugram reconhece o valor das escolhas de Uryuu, porque diferente de Ishida, Haschwalth acaba se sentindo arrependido por suas decisões.
Em suma, a luta entre Ishida e Haschwalth consistiu num embate ideológico, haja vista que Jugram acreditava que o indivíduo deve sempre manter-se objetivo e fazer a escolha que mais lhe beneficia, razão pela qual ele escolheu ser leal ao Yhwach ao invés de sua amizade com Bazz-B.
Por outro lado, Uryuu acredita que você deve sempre estar do lado de seus companheiros, independente dos benefícios ou da escolha ser certa ou errada, motivo pela qual traiu Yhwach pelo bem de seus amigos.
Após lutarem, Haschwalth chegou à conclusão de que a pessoa deve tomar a decisão que a mais lhe gratifica e te contente, independente da lógica ou resultado, a fim de que você não tenha arrependimentos no final.
Por esta razão que Haschwalth permitiu que Ishida transferisse todas suas feridas para ele para que Uryuu pudesse vivenciar sua escolha.
Ao final, é revelado que o “sonho” de Yhwach era na verdade a visão do futuro observada por Jugram que, ao invés de tentar evitá-lo, Haschwalth decidiu por manter a sua resolução.