Ichigo x Byakyua — Uma discussão sobre cumprir a lei x fazer o que achar mais certo

Uma análise aprofundada sobre uma das lutas mais famosas dos animes/mangas.

Alfamax
10 min readAug 29, 2021

Em 2016, quando a série de mangá Bleach finalizou, escrevi um texto expondo a minha insatisfação com os rumos que a série tomou no último arco. Contudo, com o decorrer dos anos, reli a obra e mudei de opinião com relação a quase todas as coisas que argumentei naquele texto, pois na releitura a obra apresentou muita qualidade que passa desapercebido, inclusive no último arco, da qual critiquei bastante na época.

Em uma nova leitura, é possível notar que Bleach traz um grande simbolismo e influências da religião (notadamente, a budista), do folclore japonês e algumas discussões filosóficas, especialmente sobre a morte, que é o tema central da série.

Portanto, para fazer justiça a obra, que infelizmente é subestimada por muitos e em várias ocasiões é tida como o “patinho feio” do Big 3 (termo designado para descrever os três mangás de maior sucesso da revista Weekly Shounen Jump nos anos 2000, quais sejam, One Piece, Naruto e Bleach), decidi revisitar um dos melhores embates do meu mangá preferido.

A luta de Ichigo Kurosaki contra Byakuya Kuchiki é icônica porque representa o clímax do arco da Soul Society, o melhor da obra e um dos melhores já escritos de todos os shounen’s. No contexto do Bleach, foi a primeira vez em que o protagonista se mostrou alguém poderoso, usando, pela primeira vez a famosa Bankai, bem como é um embate visualmente bonito e estiloso, com um bom ritmo e uma breve amostra dos poderes hollows do protagonista (cumprindo uns dos melhores clichês que é o “demônio interno”, também presente em Naruto, Yu Yu Hakusho, Nanatsu no Taizai, InuYasha, etc.).

O foco do presente texto será discorrer sobre o conflito, notadamente, sobre a personalidade, os ideais de cada personagem e a resolução do embate.

Breve histórico.

O arco começa quando Rukia é levada sob custódia por Byakuya e seu subordinado, o tenente Renji Abarai, para Soul Society em razão dela cometido a infração de, sem autorização, ter emprestado seus poderes shinigami a um humano, sendo sentenciada a pena de morte pelo “Poder Judiciário” da Soul Society, conhecida como Central 46.

Ichigo, por gratidão e um grande senso de dívida perante sua benfeitora, decide invadir a Soul Society e, ao lado de seus amigos, resgatar a Rukia de uma inevitável execução. Acontece que, diante do protagonista, há treze shinigami’s poderosos com títulos de capitão, os quais fazem parte de um grupo chamado Gotei 13, consistindo no “Poder Executivo” da Soul Society.

Consequentemente, essa instituição tradicional milenar e imponente, cujas leis são absolutas, é simbolizada em um único personagem, Byakuya Kuchiki, o qual usa sua força para que as regras sejam cumpridas, ainda que isso resultasse na morte de sua irmã, Rukia.

Sobre os dois personagens.

Vindo de uma das cinco famílias nobres e ocupante de cargo de maior escalão na Soul Society, Byakuya Kuchiki exala nobreza em todos os seus aspectos. Sua vestimenta se destaca dos demais pela sua elegância, está sempre calmo, racional e composto, mas também é esnobe e arrogante. Ademais, seu poder consiste na manipulação de milhares de lâminas cujas aparência são de pétalas de flor de cerejeira. Vale dizer que a flor de cerejeira é marcada por sua evidente beleza, sendo até considerada a flor nacional do Japão.

Observa-se que por trás do Byakuya, há séculos de tradição, etiquetas e regras que asseguram o pleno funcionamento da Soul Society. No capítulo 116, a família Kuchiki é descrita como a mais nobre das principais quatro famílias e Byakuya é considerado o capitão mais famoso do Gotei 13.

No final do arco, Byakuya revela a Rukia que quando se casou com Hisana, violou as regras da família, pois ele é nobre e contraiu matrimônio com uma aldeã. Por isso, fez um juramento no túmulo de seus pais que não descumpriria qualquer outra lei que fosse. Entretanto, ele também fez o juramento a Hisana de que iria encontrar Rukia, adotá-la e protege-la.

Quando saiu a condenação a sentença de morte de Rukia, Byakuya ficou conflitado sobre qual juramento seguir, optou por aquele que fez primeiro.

Assim, Kuchiki é uma pessoa bastante fria, racional e capaz de até matar sua irmã se a lei o determina (em verdade, apesar da ter sido adotada pela família Kuchiki para ser a irmã mais nova de Byakuya, ela é cunhada dele).

No capítulo 53, há um poema que sintetiza essa personalidade:

Nós nunca devemos derramar lágrimas. Essa é a forma de vida derrotada e se libertarmos nossas emoções, se tornará a prova de que somos inabilitados a controla-la.

Ao final da luta contra Ichigo, Byakuya revela ao protagonista que, pelo fato dele ser da nobreza e um símbolo, ele não poderia descumprir a lei, pois suas ações devem servir de exemplo para todos a sua volta e ele até possui a sua parcela de razão, a corrupção deve ser combatida principalmente por aqueles que detém o poder.

Se colocando na pele do personagem, ajudar a Rukia escapar da punição mancharia toda honra, história e prestígio que ele carrega. Melhor dizendo, seria como um juiz fazer com que seu filho deixasse de ser condenado e cumprir pena para um crime que cometeu justamente porque é seu filho.

Contudo, mesmo apresentando suas razões, o protagonista ainda contestou e inadmitiu a conduta de seu oponente de não ter feito nada para salvar sua irmã.

Ichigo Kurosaki, por sua vez, é o verdadeiro oposto do Byakuya, dado que ele foi primeiro apresentado na obra como um delinquente, jovem, temperamental, barulhento e que não possuía qualquer relação com a Soul Society.

Byakuya se sentiu profundamente irritado e incomodado com Ichigo desde a primeira vez que o viu, haja vista que a mera existência do protagonista coloca em xeque tudo o que ele acredita e vivenciou.

Como que este mero humano, que se tornou shinigami por um poder que não é dele, está conseguindo lutar de frente com um tenente? Como este humano ainda está vivo e se tornou shinigami? Como este humano em pouco tempo conseguiu ter uma bankai? Estes são alguns dos questionamentos feitos por Byakuya.

Pelo lado do Ichigo, vale dizer que ele acha inadmissível o Byakuya se colocar na posição de carrasco ao invés de tentar salvar sua irmã, visto que o protagonista possui um senso de dever de proteção enorme, principalmente de sua família, afinal, foi por causa de sua família estar em perigo que ele decidiu virar shinigami.

Atente-se pelo detalhe de as diferenças de ambos os personagens são acentuadas pelo figurino de cada um. Enquanto Byakuya evidencia seu status por sua aparência, robe de capitão e acessórios (luvas e presilha no cabelo), Ichigo é um desajustado, sendo demonstrado pelo uniforme de shinigami que mal consegue usá-lo corretamente em razão das feridas. Byakuya era para estar com o seu cachecol, mas porque lutou contra Renji antes, se desfez do acessório, sendo este o primeiro sinal de que todas as suas ideias, valores e ações serão confrontados futuramente.

Mas onde que Byakuya errou?

Byakuya estava tão inserido no status que carrega e em seu dever como autoridade, que acabou ficando cego por isso. Até Ichigo enfrentá-lo, Kuchiki jamais questionou a validade de uma lei, mesmo que essa norma prejudicasse alguém de sua família.

O maior exemplo disso é que, como até explicado pelo Aizen, as infrações que Rukia cometeu não são severas ao ponto de ensejar a punição de morte, assim como todo julgamento e as condições que levaram a isso mostraram que as autoridades da Soul Society estavam agindo de forma extremamente desproporcional e irrazoável (mal sabiam que era o próprio Aizen quem armou tudo).

Tanto é que os demais capitães perceberam que havia algo de errado. Shinsui Kyouraku e Juushirou Ukitake, por serem mais sábios e maduros, começaram a agir, porquanto ambos têm um enorme senso de justiça e foram ensinado a fazer o que é correto, ainda que isso seja contra as regras.

Outrossim, antes da cerimônia, foi mostrado outros capitães comentando sobre a “legitimidade da execução”. Sajin Komamura percebeu que estavam acontecendo muitas coisas erradas, bem como achava não fazer sentido, mas escolheu não agir porque é leal ao Genryuusai. Kaname Tousen, por ser averso à guerra e ao derramamento de sangue, optou pelo caminho que entendeu ser mais pacífico. Soi Fong escolheu não dar a mínima para a legitimidade da execução. Retsu Unohana percebeu que havia algo de errado não só com relação a todo julgamento da Rukia, como também na morte do Aizen.

Até o Toushirou Hitsugaya, embora mais novo e inexperiente, percebeu que havia uma manipulação por trás da execução da Rukia. Ainda que não interferisse na cerimônia de execução, resolveu ir na fonte do problema e foi o primeiro a descobrir quem planejou tudo.

No entanto, Byakuya foi o único capitão que presente em todas as etapas da condenação da Rukia e não percebeu o quão errado estava a coisa toda, pois estava tão imerso em sua ignorância e preso a tradição a qual carrega que deixou de ver algo que estava bem a sua frente.

Aliais, Byakuya esteve ignorante com relação a todos que estavam em sua volta. Nesse sentido, Rukia aponta que, durante os quarentas anos que foi adotada pela família Kuchiki, Byakuya nunca olhou de verdade para ela, Renji diz o mesmo ao falar que o capitão nunca olhou para os seus subordinados. Seu ponto mais baixo foi quando afirmou para o protagonista que mataria a Rukia com suas próprias mãos ao término da batalha.

Foi somente após lutar contra o Ichigo que Byakuya começou a repensar os acontecimentos e perceber que estava errado, chegando a ter o seu momento de redenção quando decidiu arriscar a sua vida para proteger a Rukia do Aizen e posteriormente pedir desculpas a ela por todo mal que causou.

Sem sua espada, cachecol, luvas, sem parte de suas presilhas e bastante ferido, Byakuya simbolicamente teve que despir-se de sua nobreza para perceber seu erro e fazer o que era inimaginável: defender sua família.

Sobre a luta em si.

Primeiro, vale destacar o ótimo trabalho do autor Tite Kubo em construir a luta e vendê-las para os leitores. Nos mangás de battle shounen, é comum o herói e o vilão terem o primeiro encontro, em que o antagonista facilmente derrota o protagonista, a fim da história demonstrar a diferença de poder entre os dois personagens e iniciar a busca do protagonista para se tornar mais forte.

Em Bleach não foi diferente, uma vez que, durante o arco, Ichigo e Byakuya se encontram três vezes: a primeira, com uma derrota completa do protagonista, a diferença de poder dos dois é distância entre o céu e a terra; a segunda, a luta dos dois foi interrompida, mas Ichigo foi capaz de observar os movimentos de Byakuya; a terceira, a razão do presente texto, quando Kurosaki finalmente consegue luta de igual com oponente e sai vitorioso.

Observe como, por quadros paralelos, Bleach mostrou a evolução de Ichigo. Na primeira imagem (à direita), sequer viu o inimigo que estava atrás, na segunda (meio), não apenas o viu como também conseguiu se defender, e na terceira (à esquerda), finalmente conseguiu lutar de frente.

Quando a luta começa, Byakuya está a todo momento subestimando Ichigo e achando que ele não passa de um garoto arrogante o qual pisa no orgulho da Soul Society e superestima o seu próprio valor.

Ocorre que a soberba de Byakuya lhe custou caro, pois quatro vezes foi surpreendido e superado pelo protagonista: a primeira, no momento de liberar a Senbonzakura (técnica da shinkai dele), foi ferido pelo Getsuga Tenshou; a segunda, quando desdenhou e desacreditou na liberação da bankai do Ichigo, teve a espada sobre seu pescoço por ele; a terceira, por achar que o protagonista conseguiu chegar até ele por pura sorte (melhor dizendo, milagre, como ele descreve), foi novamente ferido após Ichigo superá-lo em velocidade; a quarta, quando achou que a luta dos dois já havia acabado e foi tentar dar o golpe de misericórdia, Ichigo ativa pela primeira vez a sua forma hollow e facilmente supera ele no combate, deixando-o seriamente ferido.

No entanto, este último momento surpresa do Ichigo não partiu da vontade consciente dele e isso deixa o próprio protagonista atordoado, dado que ele não lutou contra Byakuya para mata-lo. Lembre-se, quando Kurosaki apontou a espada no pescoço de Kuchiki, deixou de feri-lo para provar que era tão forte quanto o capitão.

Neste ponto, ao perceber que o protagonista nunca teve a intenção de matar, Byakuya começou a abrir os olhos e propor ao herói que contaria seu motivo caso o vencesse. Logo, foi quando Byakuya começou a abrir diálogo com Ichigo que ele percebeu o seu erro, que na verdade o protagonista não estava lutando contra ele, mas sim contra as leis da Soul Society.

Conclusão.

Apesar de Bleach ser um battle shounen, a obra sempre priorizou expor os ideais, sentimentos e a personalidade de cada personagem sobre a luta visual em si. A luta entre Ichigo vs. Byakuya representa o clímax da discussão “ordem x anarquia” que o arco pretendeu contar. Leis são essenciais para manter a ordem de uma sociedade e garantir a justiça, porém como deve-se agir quando as leis não asseguram mais essa justiça e vira instrumento de destruição daqueles em que a lei deveria proteger?

Ao revelar-se vilão e contar o seu plano maquiavélico, Aizen Sousuke destaca o quão fácil foi manipular todos do Gotei 13 porque os capitães e tenentes seguiam as imposições da Central 46 sem questionar.

Ichigo Kurosaki, por ser um delinquente, humano e não pertencente daquele mundo, foi o catalisador perfeito da mudança da Soul Society, pois suas ações fizeram revelar quem era o grande vilão, fez Sajin retirar o capacete e revelar quem ele era de verdade, fez Soi Fong se reunir com a sua mestra, fez Rukia encarar seu trauma e pedir perdão a família do homem quem ela matou, fez com que Zaraki encontrasse a diversão e emoção de lutar novamente, fez com que Renji se unisse novamente com Rukia e, em especial, foi responsável por fazer Byakuya mudar para finalmente olhar de verdade e Renji e Rukia, bem como para fazê-lo questionar as leis das quais cegamente as cumpria.

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